As atrocidades históricas como escravidão ou falta de reforma agrária são fatos que ainda mancham a História do Brasil. Agora pensemos em um país felizmente desprovido de tais máculas. Parece impossível para nós e para quase todos os países latino-americanos, mas mesmo com a História pregressa da América Latina de aniquilamento social e cultural, houve um pequeno país que soube até 1864 o que era cidadania e igualdade. Um país que não tinha dívida externa, nem escravidão ou crimes relacionados à luta por terra, um país com indústria emergente e independente, no qual seu povo não conhecia o analfabetismo, o primeiro país em toda América do Sul a construir uma ferrovia, em suma, um país independente do jugo inglês e de seu imperialismo, que tinha na América Latina um promissor campo de exploração.
Feita desta forma, essa descrição pode não dar muitas pistas sobre qual país estamos falando, entretanto se pensarmos no país que se transformou essa pequena potência após os idos de 1864, com alto nível de pobreza e analfabetismo, incapaz de manter uma “realidade” industrial relevante ao mercado, sendo obrigado a importar de tudo, um país difamado, sinônimo de incredibilidade e ineficiência, um país com uma dívida externa exorbitante. Um país com um passado peculiar e a esperança de um renascer pátrio, com a eleição de Fernando Lugo, em 2008, à presidência da República, antes do golpe que o surrupiou do governo, em 2012, garantindo assim que a desigualdade social continuasse, sobretudo no campo, onde 85% das terra cultiváveis estão nas mãos de 2,6% de proprietários.
Se você pensou em Paraguai, acertou. De potência latino-americana a paraíso da pirataria, há na História do Paraguai um fato determinante que explica essa perturbadora transformação: a Guerra do Paraguai.
Em 1864 o Paraguai declarou guerra contra o Brasil depois de intervenções brasileiras em território uruguaio. Em 1865 foi formada a Tríplice Aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai, financiada pela Inglaterra, descontente com o avanço, principalmente, da indústria siderúrgica paraguaia e com a reluta deste país a contrair empréstimos financeiros ingleses.
A versão oficial para o estopim da guerra seria a vontade magnânima da Inglaterra de liberar paraguaios inocentes do poder ditatorial de Fernando Solano López (1862). Para vender sua produção industrial e agrícola para os países vizinhos, os paraguaios necessitavam cruzar a Bacia do Prata, o que chegava a acarretar alguns conflitos e, essa teria sido a desculpa perfeita para Brasil e Argentina com o auxílio do Uruguai e pressionados pela Inglaterra, levassem o Paraguai a declarar a guerra contra o Brasil.
Sob o lema “Vencer ou Morrer” e o comando de Solano López, os paraguaios entraram na guerra com um total populacional de 800 mil habitantes, lutando para defender seu território; ao contrário do que ocorreu do lado brasileiro. O Brasil não dispunha de um exército antes da guerra, apenas uma Guarda Nacional formada pela aristocracia brasileira, os chamados “coronéis”, responsáveis por manter a paz, entenda-se por isso, a escravidão vigente, a posse de terras e o abuso de poder. Alguns aristocratas enviaram seus filhos a lutar na guerra, entretanto a maioria mandou escravos seus para representá-los. Ao longo da disputa, as terras foram necessitando de braços que estavam morrendo nos campos de batalha, descontentes com os prejuízos, os “coronéis” começaram a recusar o envio de escravos ao fronte, a solução encontrada pelo comando militar brasileiro foi adotar a política do recrutamento voluntário, o que recebeu o nome de “Voluntários da Pátria”. Contudo, olhando a História um pouco mais de perto, vê-se que esses voluntários não iam à guerra por vontade própria, ao invés disso, eram sequestrados e vendidos para o exército. Eram homens pobres, doentes mentais ou com alguma incapacidade; aqueles que não tiveram recursos financeiros para comprar sua liberdade acabaram tornando-se os “voluntários da pátria”. Além dos “voluntários”, o exército contava com o auxílio de mercenários que lutavam em troca de dinheiro e mesmo assim, o Brasil tinha dificuldade para vencer os paraguaios.
A guerra ia se arrastando ao longo dos anos sem possibilidade de uma trégua a vista. Informações sobre as atrocidades realizadas durante a batalha chegavam aos ouvidos dos brasileiros e ia-se desmoralizando a luta e o Império. Tal era o quadro que se apresentava nos idos da guerra que em 1869, Duque de Caxias pede demissão de seu posto de comando alegando que para ele a guerra já havia chegado a seu fim, se continuassem com ela se consagraria um verdadeiro genocídio de soldados paraguaios famintos e um exército falido. A vontade de Caxias por um tratado de paz não foi aceita pelo imperador do Brasil Don Pedro II, e para substituí-lo, o monarca designou seu genro, o francês Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel, que tinha fama de sanguinário e de desprezar brasileiros.
Para fazer jus a sua alcunha de sanguinário, Conde d’Eu, no que foi a última batalha entre brasileiros e paraguaios, ordenou aos seus 20 mil homens o ataque ao exército paraguaio, formado apenas por 3500 pessoas entre crianças e mulheres, os últimos soldados restantes. Depois de exterminados os paraguaios, Conde d’Eu ordenou que incendiassem os sobreviventes que haviam se refugiado em um campo próximo a batalha. Porém a guerra só terminaria depois que Solano López fosse assassinado, o que ocorreu em primeiro de março de 1870, seis anos após o início da disputa.
Com o fim da guerra, o Tratado da Tríplice Aliança dividiu entre si grande parte do território paraguaio. Cada país, além dos territórios também contraíra dívidas exorbitantes com a Inglaterra que os perseguem ainda nos dias de hoje.
Em 1870 o Paraguai era um país endividado, destruído, com mortos e entulhos espalhados por todo seu território. De sua população de 800 mil habitantes restaram apenas 606 mil pessoas, das quais 40 mil eram mulheres e 2100 homens, o que explica que mesmo atualmente a população do Paraguai seja jovem e não muito numerosa.
Estive em Ciudad Del Este, no Paraguai, em 2008 e a visão não foi muito agradável. As pessoas pareciam viver sem muito o que esperar do amanhã. Fora do circuito de compras, havia uma cidade urbana, comum, sem grandes atrativos, propagandas, carros importados. As pessoas estavam de passagem – fossem habitantes correndo para embarcar nos ônibus antigos, brasileiros desesperados para atravessar a fronteira com suas muambas – parecia que ali ninguém queria ficar por muito tempo; por outro lado foi difícil encontrar alguém que soubesse a correta direção da rodoviária, talvez essa fosse uma informação mesmo desnecessária, quando o presente clama por atenção.
Na rodoviária imagino ter ofendido uma garçonete ao perguntar se ela aceitava cartão de crédito, a garota esboçou uma expressão facial tão abismada que por um momento minha fome calou-se de vergonha. Pouco tempo depois descobri que pouco importa se você tinha guaranis (a moeda oficial do Paraguai) ou não para pagar o que queria consumir porque eles não eram necessários se você possuísse dólares ou mesmo reais. Falando neles, as notas de guaranis eram surradas, velhas, rasgadas, e as moedas tinham pouco valor, imagino que a economia não tivesse lastro suficiente para propiciar novas moedas ao mercado. Junto ao hino, a bandeira e a Constituição, a moeda de um país é aquilo que o define, o que dizer de um país no qual sua moeda não tem valor venal.
Andar por Ciudad Del Este é como se sentir no Brasil. As pessoas falam português o tempo todo, mesmo que você fale com elas em espanhol, o real pode ser usado normalmente, há brasileiros para todos os lados, a fronteira entre o Paraguai e o Brasil é praticamente inexistente, – do lado paraguaio -, pode-se cruza-la sem precisar de visto ou qualquer documento de identidade, as ruas são sujas, a música é sertaneja e as pessoas são simpáticas.
É triste saber o que foi o Paraguai antes da guerra e o que ele se tornou depois dela. E, pensar que ao menos a América do Sul, se tivesse se unido para fortalecer o Paraguai ao invés de destruí-lo, teria evitado traumas sociais como a escravidão, analfabetismo, conflitos por terra, desmatamento da Amazônia e tantas outras atrocidades as quais vamos nos acostumando a esquecer, poderiam ter sido evitadas ou ao menos minimizadas e talvez, quando alguém falasse que iria mochilar pala América do Sul ouvisse algo menos obsceno que “Quer ver desgraça? Fique no Brasil!”.
Agora é possível compreender porque não existe nenhuma mini-série sobre a verdadeira Guerra do Paraguai. A quem interessaria contar que o Duque de Caxias não fora herói, que a República brasileira foi um jogo de interesses e vaidade, ou que se não fosse pelo orgulho e status incutidos ao exército após o “êxito” da guerra contra o Paraguai, provavelmente os militares não teriam tido força política ou social para instaurar, quase um século depois, em 1964, a Ditadura Militar.
Pensemos todos nisso, brasileiros, argentinos, uruguaios, orgulhosamente matamos uma nação e condenamos outras três. 👊🏻
Enquete: Até quando vamos ter que aguentar esse papo de intervenção militar outra vez no Brasil? Quando vamos parar com as piadas idiotas sobre o Paraguai? ❓🔙
PS: Esse texto foi primeiramente publicado no site “Soy Loco Por Ti América”, em 23 de maio de 2008, e por isso, sofreu algumas atualizações.